domingo, junho 10, 2007

 

Carta de amigo muçulmano ao sacerdote caldeu assassinado no Iraque


(ZENIT.org) Publicamos a comovedora carta de um amigo muçulmano ao Pe. Ragheed Aziz Ganni, o sacerdote caldeu assassinado no domingo passado em Mosul, Iraque, junto a três subdiáconos.


* * *
Em nome de Deus, clemente e misericordioso, Ragheed, irmão meu
Eu te peço perdão, irmão, por não ter estado ao teu lado quando os criminosos abriram fogo contra ti e teus irmãos, mas as balas que transpassaram teu corpo puro e inocente me transpassaram também o coração e a alma.
Foste uma das primeiras pessoas que conheci ao chegar a Roma, nos passeios do «Angelicum» [a Universidade Pontifícia de Santo Tomás, ndr], onde nos conhecemos e onde bebíamos juntos nosso «capuchino» na cafeteria da universidade.
Tu me havias impressionado por tua inocência, tua alegria, teu sorriso terno e puro que não te abandonava nunca. Eu não posso deixar de imaginar-te sorrindo, feliz, cheio de alegria de viver.
Ragheed para mim é a inocência feita pessoa, uma inocência sábia, que leva em seu coração as preocupações de seu povo infeliz.
Recordo um dia no restaurante da universidade, quando o Iraque estava sob embargo e tu me disseste que o preço de um só «capuchino» teria podido sanar as necessidades de uma família iraquiana durante todo um dia, como se te sentisses de algum modo culpado de estar distante de teu povo assediado e de não compartilhar seus sofrimentos...
Depois voltaste ao Iraque, não só para compartilhar com as pessoas seu destino de sofrimentos, mas também para unir teu sangue ao de milhares de iraquianos que morrem a cada dia. Não poderei nunca esquecer o dia de tua ordenação na Universidade Urbaniana... Com lágrimas nos olhos, tu me disseste: «Hoje morri para mim»... uma frase muito dura. Imediatamente não a compreendi bem, ou talvez não a levei a sério como deveria...
Mas hoje, através de teu martírio, compreendi esta frase... Tu morreste em tua alma e em teu corpo para ressuscitar em teu bem-amado e em teu mestre, e para que Cristo ressuscite em ti, apesar dos sofrimentos e das tristezas, apesar do caos e da loucura.
Em nome de que deus da morte te mataram? Em nome de que paganismo te crucificaram? ... Sabiam verdadeiramente o que faziam? Ó Deus, nós não vos pedimos vingança ou represália, mas vitória... vitória do justo sobre o falso, da vida sobre a morte, da inocência sobre a perfídia, do sangue sobre a espada...
Teu sangue não terá sido derramado em vão, querido Ragheed, porque santificaste a terra de teu país... e teu sorriso terno continuará iluminando desde o céu as trevas de nossas noites e anunciando-nos um amanhã melhor.
Eu te peço perdão, irmão, mas quando os vivos se encontram, crêem que têm todo o tempo para conversar, visitar-se e dizer os próprios sentimentos e os próprios pensamentos...
Tu me havias convidado ao Iraque... Eu sonhava sempre com isso... visitar tua casa, teus pais, teu escritório... Não teria nunca pensado que seria teu túmulo o que um dia visitaria ou que teriam sido os versículos de meu Corão os que recitaria para o repouso de tua alma...
Um dia, eu te acompanhei a comprar objetos de lembrança e presentes para a tua família nas vésperas de tua primeira visita ao Iraque após uma longa ausência. Tu me havias falado de teu trabalho futuro: «Queria reinar sobre as pessoas sobre a base da caridade antes que da justiça», me havias dito. Então me era difícil imaginar-te como «juiz» canônico...
Mas hoje teu sangue e teu martírio pronunciaram sua palavra, veredito de fidelidade e de paciência, de esperança contra todo sofrimento e de sobrevivência, apesar da morte, apesar do nada.
Irmão, teu sangue não foi derramado em vão... e o altar de tua igreja não era uma farsa... Tu assumiste teu papel com profunda seriedade, até o final, com um sorriso que nada poderá apagar... nunca.
Teu irmão que te ama: Adnan Mokrani Roma,

4 de junho de 2007 Professor de Islã no Instituto de Estudos das Religiões e das Civilizações, Universidade Pontifícia Gregoriana, Roma. [Tradução realizada por Zenit] ZP07060732

Comments:
Comovente demais esta carta. Extremamente forte o seu conteúdo. Forte e contundente.
Estou agora a refletir profundamente o que na minha vida poderia significar "morrer pra mim". Penso que seja tudo o que no meu dia-a-dia eu possa oferecer como "sacro ofício". Aqueles momentos em que tenho de me esquecer de mim para atender o outro. Quando o altruísmo fala mais alto que o egoísmo. Quando o coração me vai guiando à generosidade, à benevolência, à compreensão, à compaixão. Penso que seja mesmo isso: quando o eu é menos primordial que o tu.
 

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